Revista Portuguesa de Psicanálise 41(1): 35-36


Comentário ao artigo de Conceição Melo Almeida:  “Estados primitivos da mente. O trabalho onírico no encontro analítico” 


M. Carmo Sousa Lima 1


Trata-se de um artigo psicanalítico consistente, bem articulado, suportado por uma bibliografia cuidada.

A análise do conceito “estados primitivos da mente” apoia-se numa pesquisa que parte de Freud, mas que se fundamenta especialmente na psicanálise kleiniana e post-kleiniana inglesa: Klein, Winnicott e sobretudo Bion (e ainda Green, o mais anglo-saxónico dos franceses).

Na abordagem teórica da evolução/revolução epistemológica, ao longo da história do pensamento psicanalítico, consegue delinear um “fil rouge” seguro. Revela uma elaboração muito bem integrada e fluída quanto à evolução teórica dos conceitos fundamentais, especialmente na passagem de Freud para Klein e de Klein para Bion.

Conseguindo identificar a presença dos estados primitivos da mente no processo psicanalítico, tem acesso a um maneio particular da transferência/contratransferência, bem como da interpretação que decorra mais da intuição.

É dado um enfoque particular à metapsicologia dos estados primitivos da mente em Bion, autor em que se suporta para desenvolver e aplicar o conceito de “rêverie”, bem como o uso do “trabalho onírico” na sessão.

O subtítulo do artigo poderia ser a própria questão do pequeno paciente apresentado: “Conceição, o que é sonhar?”. 

A autora traça uma linha bem elaborada sobre o que é sonhar em psicanálise desde Freud até Bion. Abordando o protomental inspirada em Bion, parte das origens do pensar em que o sonho certifica as transformações T(O) em psicanálise. 

Sendo o impacto estético, segundo Meltzer, a primeira emoção, a raiz dessa mesma emoção estaria já em formação in útero pelo 4º/5º mês da gestação. A formação de um “proto-objecto som” precursor do objecto interno mãe e do próprio seio enquanto pré-concepção, coincide com a sucção in utero2. O caso clínico de uma criança de 3 anos, apresentado neste trabalho, bem confirma a falha dessa experiência e a construção redentora feita com a analista desse mesmo objecto primitivo musical...

Alexandra Piontelli, Suzanne Maiello, Mauro Mancia, Romana Negri e Judith Mitrani desde os anos 80 estudam os processos protomentais do feto inspirados precisamente pela psicanálise pós-kleiniana. Apoiam precisamente a continuidade entre a vida pré-natal e o pós-natal e neonatal, ultrapassando o dualismo corpo-mente, reforçando que tanto para Meltzer, como para Bion, “o corpo é que pensa” (aqui seria pertinente referir o conceito de “caesura”)… 

A ilustração clínica apresentada é de grande qualidade. Mais que a intencionalidade de eventuais interpretações ou construções é-se particularmente sensível à qualidade da “presença” da analista, criando um clima propiciatório à intimidade, um clima de “kindness” (Meltzer) – uma espécie de delicadeza, um fino cuidado que decorre seguramente do mundo dos objectos internos da analista, que é finalmente o que o analisando escuta. Viviane Chetrit-Vatine refere a “sedução ética da situação analítica”... Acrescentaria obviamente a dimensão estética. 

O caso de António de 3 anos é comovente… É pela musicalidade, rêverie e intuição da analista na comunicação que se pôde construir uma “membrana alfa” (Meltzer) que permite a alteridade, processo que parece ter falhado na criação de um proto-objecto-som (de afecto/qualidade musical) eventualmente ainda durante a gravidez. Foi em rêverie que a analista foi musicando a relação num banho de linguagem continente, prestando-se a um uso disponível para a identificação projectiva.

Recorro ainda a Meltzer para lembrar o que ele muito elabora sobre a beleza do próprio processo analítico, de que nós somos fascinados assistentes nesta apresentação.

Para terminar, ao ter o privilégio de ler este caso, pensei: é bem verdade que a psicanálise é também uma arte. Mas não basta talento! Como em qualquer arte há que juntar teoria, técnica e prática. A autora consegue.



1 Psicanalista de Crianças e Adultos. Membro Permanente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, da International Psychoanalytical Association e da European Psychology Federation. E-mail: carmosousalima@gmail.com 

2 De referir que a cóclea é o primeiro órgão a estar formado (pelas 8 semanas).

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