Revista Portuguesa de Psicanálise 41(1): 3-6
Editorial
O infantil como conceito multidimensional do inconsciente dinâmico: trauma originário, desorganização psíquica, reinvenção onírica, simbolização e transformação
Carlos Farate
Este número da Revista Portuguesa de Psicanálise é, mais uma vez, inovador no duplo plano editorial e temático. No plano editorial, porque é o primeiro número da revista publicado exclusivamente em edição digital. No plano temático, porque este é um número cujo tema prioritário — Psicanálise de crianças e adolescentes: possibilidades e limites — é coerente com o tema do Congresso da IPA deste ano e está relacionado com o eixo temático do Colóquio da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) em curso.
Ora, tanto os autores dos artigos que substanciam o índice deste número como os animadores do debate acerca das vicissitudes éticas e transferenciais do final do tratamento psicanalítico de infantes e adolescentes perscrutam as várias dimensões do infantil como conceito primordial do inconsciente dinâmico, do infans ao sujeito de palavra e linguagem.
Com efeito, a psicanálise investiga, desde a sua infância como metapsicologia do conhecimento de si mesmo e do outro, que abre ao si próprio, os elementos primitivos, arcaicos e pré-conscientes que permeiam a mente humana, num esforço permanente de decriptação simbólica de um desconhecido semiótico permeado de sons, imagens e sensações táteis e olfativas organizados como uma protolinguagem, antropologicamente análoga ao sistema complexo de ideogramas nos primórdios do homo sapiens sapiens.
O artigo convidado do distinto psicanalista Lawrence Brown, com o elegante título «O Renascer das Cinzas», propõe-nos, em introito, um texto prosódico acerca dos traumatismos morfogenéticos originários do planeta Terra, úbere matricial da humanidade, e oferece-nos, de seguida, um elegante excurso teórico no qual, a propósito do trabalho psicanalítico com uma criança do espectro autístico, revisita os contributos mais significativos da ciência psicanalítica à práxis terapêutica dos infantes enredados na desorganização psíquica imemorial de um trauma originário imperscrutável. Além da referência aos aportes de grandes psicanalistas, sobretudo na tradição epistemológica da psicanálise anglo-americana pós-kleiniana, L. Brown revaloriza o conceito de «autismo psicogénico» de Frances Tustin e as noções de objetos autísticos, encapsulamento autístico e parte autística da personalidade (particularmente interessante aqui a referência à noção de «transformações autísticas», de Korbivcher, de indelével inscriptio bioniano) que decorrem, direta ou indiretamente, das induções clínicas desta autora. Muito em particular, o seu artigo contribui para resgatar a obra de Tustin, e de um modo geral os contributos da psicanálise para a compreensão psíquica das perturbações autísticas, do «deadlock» científico desvalorizante a que a extensão equívoca destas noções psicanalíticas à neuropsiquiatria e à neuropsicologia desenvolvimental tinha conduzido.
Por aí, Lawrence Brown, os seus comentadores Rui Aragão Oliveira e Maria do Carmo Sousa Lima, bem como Conceição Melo Almeida, Fernanda Alexandra e os participantes no debate acerca do final do tratamento psicanalítico de crianças e adolescentes, Ana Melícias, Elisabeth Cimenti e Dieter Burgin, obviam claramente ao equívoco epistemológico de tomar a psicanálise como psicologia do desenvolvimento.
O comentário de Rui Aragão Oliveira começa por destacar a persona psicanalítica do colega do prestigiado Boston Psychoanalytic Society and Institute e realça, de seguida, a exemplaridade da comunicação do seu trabalho psicanalítico com Sean, simultaneamente nos planos da ética intersubjetiva e da teoria da técnica transferencial-contratransferencial com referências pertinentes a alguns aportes reflexivos de Judith Mitrani a este propósito.
O artigo convidado, de Conceição Melo Almeida, é uma súmula excursiva bem encadeada e epistemologicamente bem construída do brilhante trabalho teórico-clínico que apresentou para passar a membro titular da SPP e da IPA. A autora dá conta do modo como os efeitos desorganizantes do trauma psíquico originário são resgatados pela utilização da interpretação do material proto-onírico e onírico (parsemeado de «restos» simbolizáveis de elementos primitivos confusamente inscritos num sistema protomental aquém do ideograma) como ferramenta terapêutica para trazer à vida, para obrar a reinvenção psíquica de António. A «mise au point» teórica dos conceitos de estados primitivos da mente e de trabalho onírico é rica e bem integrada (destacamos a alusão às noções de «mãe morta» e de trabalho do negativo de André Green e a referência ao excelente artigo de Winnicott sobre o «Fear of Breakdown», um texto de grande relevância clínica), e a comunicação do trabalho clínico com o pequeno António é tocante (como a sua comentadora bem realça), a fazer-nos recordar das brilhantes descrições de casos clínicos de S. Freud e de M. Klein.
O comentário de Maria do Carmo Sousa Lima é escrito com a finura de análise e a sensibilidade que constituem a «marca d´água» dos seus aportes reflexivos. A sugestão metapoética de «Conceição, que é sonhar?» como subtítulo do artigo é a ilustração do que acabei de escrever. Assaz pertinente, o apontamento acerca da continuidade do pré-natal, do pós-natal e do neonatal, numa linha teórica que irmana dois dos mais relevantes psicanalistas pós-kleinianos, mais precisamente Donald Meltzer (a dimensão estética e a «kindness» do processo psicanalítico, o «corpo que pensa», o «proto-objeto» som como precursor do objeto interno mãe) e Wilfred Bion, com a genial extensão da ideia freudiana de «caesura».
Já Maria Fernanda Alexandre nos presenteia com a sua sageza reflexiva no excurso teórico-clínico sobre o caos, a desorganização psíquica, que se segue ao trauma originário e mobiliza no infans a clausura num «território autístico» contíguo a um ego infantil envelopado numa bola-bolha, «erigida» como defesa impenetrável contra um caos psíquico fragmentário que o aliena de um continente matricial falido. A alegoria retórica de Ovídio sobre o caos cósmico originário serve de nota de frontispício e «fil rouge» filosófico ao trabalho de reconstrução generativa de um setting/continente sonoro progressivamente partilhado «in between» terapeuta e ego infantil nascente da criança em tratamento, norteada por um binómio contratransferência-transferência de excelente qualidade intersubjetiva.
Numa linha teórica e epistemológica complementar, e cara à psicanálise francesa, o psicanalista François Marty oferece-nos um «fresco» de análise de conteúdo mitológica e histórico-sociológica da anatomia psicanalítica de um matricídio «obsolescente», com referência ao neologismo psicanalítico do destacado psicanalista francês Philippe Gutton, em relação ao crime violento agido por Pierre Rivière no primeiro quartel do século XIX da França pós-napoleónica. O matricídio, interpretado como parricídio no feminino, assinala, para este autor, a incapacidade de constituir o objeto materno edipiano, escapando à morte simbólica da mãe, da mesma maneira que o parricídio subverte a morte simbólica do pai edipiano, obviando, deste modo, à elaboração da castração simbólica, epítome da tragédia edipiana que conduz à diferenciação de sexos e de gerações.
Maria Fernanda Alexandre, precursora da formação em psicanálise da infância e adolescência na SPP, no âmbito da iniciativa COCAP da IPA, introduz o debate acerca da finalização do tratamento psicanalítico de crianças e adolescentes realçando as dificuldades associadas à elaboração da contratransferência na dinâmica da relação transferencial «a três gerações» da psicanálise infantil e do adolescente, ideia fecunda que retoma a F. Guignard e D. Houzel e que, em seu juízo, traduz adequadamente aquele que é o fio condutor da teoria da técnica psicanalítica no tratamento de crianças e adolescentes.
Ana Belchior Melícias, uma das mais destacadas psicanalistas de crianças e adolescentes da primeira geração desta especialização terapêutica, responde ao desafio de Fernanda Alexandre destacando, em primeiro lugar, a importância do encontro do infantil de analista e analisando na clínica contemporânea, que reenvia, no seu contributo para o debate, à feliz asserção de F. Guignard acerca da passagem do infantil como adjetivo ao infantil como substantivo na psicanálise pós-freudiana. Revisita sucintamente os estudos de caso paradigmáticos de Freud, Klein e Winnicott, destacando as diferenças da teoria da técnica em cada um deles, que ilustra com excertos pertinentes de casos da sua clínica pessoal, e substancia, de forma personalizada, a injunção de D. Meltzer, segundo a qual os critérios de finalização do processo psicanalítico em adultos dificilmente poderão ser aplicados à psicanálise infantil, em função das transformações pubertárias e juvenis por que ainda terão de passar.
Já a destacada psicanalista brasileira de Porto Alegre, Elisabeth Cimenti, no seu elegante contributo para o debate, inaugurado e epilogado com belíssimas estrofes de dois grandes poetas brasileiros, respetivamente Vinícius de Moraes e Manoel de Barros, concentra-se na elaboração da transferência com os pais de crianças e adolescentes, recorrendo ao conceito lacaniano do Sujeito Suposto Saber para aconselhar o psicanalista a pôr-se em guarda contra a tentação narcísica de espelhar, na relação terapêutica com a criança, os desejos infantis insatisfeitos dos pais e mães consultantes projetados na criança-cliente, na perspicaz asserção do grande psicanalista português, pioneiro da saúde mental infantil e juvenil em Portugal, João dos Santos. Este contributo salienta, mais uma vez, a importância da comunicação triangular do inconsciente, do infantil, entre pais e analista.
Dieter Burgin, um renomado colega suíço, destaca a dimensão do processo psicanalítico, e numa afirmação tacitamente inspirada em Meltzer, destaca que fim e começo estão interligados neste processo, desenvolvendo a ideia de que a questão do tempo de terminação do processo depende, intersubjetivamente, mesmo na psicanálise infantil e adolescente, do diálogo crítico entre os objetivos do analisando e as finalidades que o analista considera serem apropriadas e alcançáveis.
O infantil também é o eixo do artigo clínico em que a colega Sandra Oliveira explora a importância do labor de elaboração simbólica da desorganização psíquica e psicossomática num analisando adulto que sofreu o efeito conjugado de traumas cumulativos, noção heurística de Masud Khan na sua reflexão sobre o lugar do trauma psíquico como sintoma na psicanálise, induzida por perdas amorosas e objetais precoces, com as consequentes roturas de sentido e a irrupção de elementos primitivos e psicóticos inibidores de uma vida amorosa e sexual satisfatória.
Já o artigo de um grupo (a quatro mãos) de psicanalistas e candidatos a psicanalista da SPP (Rita Marta, Tomás Miguez, Inês Ataíde Gomes e Sofia Figueiredo), sugestivamente intitulado «A Clínica de Quarentena», apresenta ao leitor quatro olhares, entre o vivencial e o experiencial, de terapeutas que se viram privados do setting corpóreo tradicional do dispositivo «cadeira-divã», substituído por um dispositivo virtual, que um deles designa por «teledivã», ou assepsiado de modo a tornar-se quase incorpóreo e inefável. Mesmo se as coordenadas teóricas a que cada um recorre para se orientar nesta quase «confusão de línguas» (a fala inconsciente angustiada dos terapeutas in nomine psíquico da linguagem-ausência de palavra, ou vice-versa, transferida-contratransferida pelos pacientes) são diversificadas, nunca deixam de ser pertinentes para cada uma das narrativas que se desenvolvem ao longo de um diálogo interlinguístico estimulante.
A recensão da candidata a psicanalista Filipa Falcão Rosado à coletânea de cartas de 42 psicanalistas titulares e didatas de sociedades psicanalíticas de 15 países e dirigidas a (imaginários) destinatários candidatos a psicanalista, coligida e editada pelo psicanalista norte-americano Fred Busch e intitulada Dear Candidate: analysts from around the world offer personal reflections on psychoanalytic training, education, and the profession, é elaborada com uma subtileza, uma lhaneza e uma simplicidade esclarecida, que não resisto a sintetizar com a transcrição de uma tocante passagem da autora, verdadeira ode de amor à psicanálise, em que escreve que estas cartas «são, também como as li, cartas de amor à psicanálise».
Finalmente, faço votos que os dear colleagues and friends leiam este número digital da revista com o mesmo prazer com que leriam a sua edição impressa, sabendo, ademais e de antemão, que poderão fazer o download grátis dos artigos cuja leitura mais lhes agradar. ♣