Carlos Farate
O número 40(2) da Revista Portuguesa de Psicanálise pode considerar-se, a justo título, um número histórico.
Com efeito, mesmo se é verdade que a publicação deste número, subordinado ao tema prioritário «de época» — «Ajustamentos do setting terapêutico em tempos de pandemia pela COVID 19» —, foi marcada por vicissitudes editoriais que conjugaram crise da mudança e mudança em «crise», não é menos verdade que a RPP inaugurou, com este número, a modalidade «chamada para artigos» preferencialmente entre os sócios da SPP, com divulgação secundária, e atempada, pela IPA News e por algumas Sociedades Psicanalíticas ibero-americanas com ligações privilegiadas à SPP. O que complementa, com vantagens previsíveis no futuro, a metodologia habitual do convite personalizado a autores, sobretudo da psicanálise e nacionais, que apresentam comunicações, sessões ou conferências em reuniões científicas organizadas pela SPP (por vezes, também no âmbito da FEP, da FEPBRASI ou da IPA). Não esqueçamos, aliás, que este ano tem sido marcado pela (quase) anulação dos eventos científicos mais significativos no campo da psicanálise.
A mudança de estratégia editorial acima referida já colocaria este número sob o signo da mudança. Mas a mudança maior, essa histórica, é que este é o primeiro número editado online pela RPP, agora com site próprio e personalizado. Este número marca, então, a entrada da revista numa nova era, a era das publicações científicas digitais em plataforma OJS/PKP, de cujo repertório nacional passará a fazer parte a partir do próximo ano.
Mudança necessária esta, e anunciada pelo atual Editor desde a primeira hora, a fim de manter a tradição, uma tradição reinventada, e reforçar o prestígio da revista científica da SPP e dos psicanalistas portugueses, já que cimentará quer a posição predominante entre os periódicos psicanalíticos, ou de orientação psicodinâmica, em Portugal, quer a sua expansão e reconhecimento internacional.
Um objetivo nobre que conta, desde setembro deste ano, com o trabalho competente e dinâmico de um novo Conselho Editorial, acerca do qual o maior elogio que aqui pode ser enunciado é de que se trata de uma verdadeira equipa editorial!
Em linha com a mudança e a tradição reinventada, nada melhor do que «abrir» este primeiro número com uma entrevista a Celeste Malpique, personalidade ímpar e de recorte ético, científico e psicanalítico irrepreensível, cuja vida pessoal e profissional, com cambiantes culturais de grande qualidade, tem a curiosidade intelectual e a sede de saber como «marcas d’água» inconfundíveis. Entrevista conduzida com afeto, sensibilidade mnésica e sensatez crítica pelas suas amigas, discípulas e admiradoras, Ana Belchior Melícias e Isabel Quinta da Costa.
O artigo do grande psicanalista argentino Carlos Barredo também nos fala das adaptações à mudança do setting pela reinvenção da tradição psicanalítica, a palavra significante na comunicação entre inconscientes da sessão analítica, em diálogo interlinguístico, neste caso com a poesia. O seu excurso, a espaços poético e a outros quase crónica do tempo que passa, é marcado pelo rigor especulativo, pela sobriedade intelectual e pela ética da procura da verdade psíquica. Que o título do ensaio psicanalítico, «De cuarentenas, verdades y poética», deixa, aliás, claramente antever. Trata-se, no final, de uma reflexão sobre o que é ser psicanalista em todas as estações e circunstâncias existenciais, isto é, de um ensaio que discorre sabiamente sobre a práxis psicanalítica.
O artigo teórico-clínico de Guilherme Rui Canta e Vera Ramos aborda o tema do acompanhamento psicoterapêutico de mulheres confrontadas com o terrível paradoxo de serem parturientes a título póstumo, isto é, mães que perderam o direito à vida de um filho que geraram no seu útero por tempo insuficiente. A qualidade e intensidade da angústia de morte de ambas as mulheres cuja vinheta clínica é apresentada, uma de índole mais objetal e a outra narcísica, é discutida com consistência teórica e sensibilidade, ademais ilustrada com pinturas e litografias da mítica mulher e pintora mexicana Frida Kahlo, ela própria sujeito, e vivente, mais do que sobrevivente, de perdas dolorosas transitadas por uma mente de corpo sofrido.
Maria José Azevedo discorre acerca do que designa de psicanálise virtual de crianças, através de uma reflexão teórico-clínica bem estiada teoricamente em referências de predominância winnicottiana e kleiniana, na qual analisa, de modo honesto e perspicaz, a dualidade do virtual e do presencial na triangulação, obligée na psicanálise infantil, terapeuta-ambiente materno-criança, com reflexão final interessante sobre as vicissitudes transferenciais e contratransferenciais da relação psíquica «quaternária»: analista-supervisora-mãe-criança.
Pelo seu lado, Filipe Saramago, Maria João Abrantes, Inês Lobo Madureira, Ana Alexandre e Marina Prieto Lencastre oferecem-nos uma revisão teórica interessante relativamente ao conceito psicanalítico do trauma psíquico, em que se propõem reinventar a leitura tradicional deste conceito freudiano, expandido por Ferenczi e aprofundado por Abraham e Torok, através da sua abordagem transgeracional, com referências às noções de telescopagem de gerações de Faimberg e de pacto denegativo de Kaes. Mas é o ensaio de diálogo interlinguístico com a teoria da vinculação, mediado pelo framework teórico da mentalização, transcrição psicanalítica do conceito de vinculação superiormente realizada por Fonagy, Bateman e Target, e com a epigenética, com referência predominante à obra de Beloni, que os autores conseguem integrar criticamente num todo coerente com o tema do artigo: trauma psíquico e transgeracionalidade.
Já Leila Barreira, Henrique Testa Vicente e Carlos Farate constroem um estimulante texto ensaístico em que elaboram a análise de conteúdo psicanalítico da obra autobiográfica crucial do destacado escritor e opiómano inglês, do século XIX, Thomas de Quincey, sob o título testemunhal Confissões de um Opiómano Inglês, em que recorrem ao conceito freudiano de «pulsão de morte» e ao conceito bioniano de « alfa dream work» como fil rouge de uma viagem psicanalítica ao interior de uma mente aditiva fascinante.
Os Temas em Debate constituem um Finale regenerador e entusiasmante para este número da nossa revista. Sendo o tema em debate a ética na psicanálise a distância, a experiente psicanalista Maria José Gonçalves abre o debate, ao estilo sintético, preciso e esclarecido que lhe é habitual, e começa por realçar a importância de pensar as questões relacionadas não só com a confidencialidade mas também com os efeitos psicanalíticos da substituição do setting clássico por um setting virtual e volátil. Interroga, e interroga-se, de seguida, acerca da identidade psicanalítica, e aborda, finalmente, a dialética da ética individual da pessoa do analista e da ética do processo analítico. Na discussão, o diálogo interlinguístico é também um debate de tradições reinventadas por uma mudança de setting mandatória, e que até aqui, leia-se até aos tempos de pandemia, parecia ser facultativa. Neste debate, parecem desenhar-se duas vias de compreensão do fenómeno. Enquanto Daniel Shoffer Kraut, numa posição crítica e criativa inspirada numa leitura contemporânea de Freud e Lacan, considera que o dispositivo institucional cadeira-divã arrisca tornar-se no leito de Procusto de uma práxis psicanalítica ortodoxa, referindo-se ao étimo latino da palavra discurso, divergência de curso, para realçar a importância da relação de palavra e linguagem significante na transição entre a metonímia e a metáfora que constrói a busca da verdade psíquica e instaura a ética psicanalítica, Carlos Farate realça que o setting psicanalítico se institui no encontro de inconscientes que constrói a escuta intersubjetiva de analista e analisando, e que essa ethiké não deverá ser posta em causa pelos arranjos circunstanciais do dispositivo terapêutico, ou a práxis terapêutica ortodoxa arrisca deixar de ser psicanalítica. Em via reflexiva diferente, Luis Martin Cabré discorre criticamente sobre os efeitos da disrupção do tempo-espaço habitual do encontro analítico numa época pandémica já de si marcada pelo isolamento traumático da relação corpórea, e valoriza a importância do setting clássico na intensidade da fantasia inconsciente e da transferência-contratransferência do par analítico, embora considere que, a despeito dos fatores externos, é a disposição mental do analista e a sua recetividade que são cruciais na manutenção da relação analítica. Pelo seu lado, Rui Aragão Oliveira realça a importância da instituição psicanalítica como retaguarda material e psíquica do psicanalista in actu, embora também considere que o psicanalista, com a retaguarda da capacidade de autoanálise e autorreflexão, deverá estar em condições de preservar a ética do reencontro do objeto analítico, nuclear no processo psicanalítico.
Finalmente, Rui Aragão Oliveira propõe-nos uma recensão crítica estimulante à interessante obra Reading Bion, de Rudi Vermote, que acaba por constituir um introito, à laia de convite, à leitura do livro, e Emílio Salgueiro dedica a sua curiosidade intelectual e psicanalítica, sobejamente reconhecida, à recensão crítica da curiosa noção de Complexo de Lúcifer, proposta por Maria José Vera, e que o autor da recensão nos informa ser o alter-ego literário da psicanalista Maria José Azevedo.