https://doi.org/10.51356/rpp.402a3
Maria José Martins de Azevedo [1]
RESUMO
Neste artigo, analisa-se o modo como a nova circunstância pandémica por Covid-19, que assolou a humanidade em 2020, constitui um «trauma» com repercussões na área de ilusão e no par analítico, criando um «novo contexto» ou um novo meio ambiente psíquico, no qual decorre a relação. A perda da fiabilidade e da confiança básica no mundo externo, que havia sido tomado por garantido, bem como a alteração do setting, representada pelas mudanças quer do local onde decorre a sessão, no consultório ou virtualmente, quer da introdução de novas exigências de proteção contra a infeção (uso de máscara, medidas de higiene), constituíram uma alteração profunda do quadro, «uma ferida traumática», criando um «novo meio normal» no qual se processa a análise. Esta interrupção do processo tal como era vivido anteriormente gerou uma descontinuidade, a qual se refletiu no psicanalista e na sua prática psicanalítica, no paciente e ainda no processo analítico. Uma psicopatologia pandémica baseada na regressão a estados obsessivos e paranoides precoces pôde emergir como expressão da descontinuidade e enquanto defesa contra a dor melancólica da perda do meio e do self. A estranheza, os estados confusionais, as angústias existenciais de aniquilamento, de perda do sentido da vida e da identidade, bem como a emersão da patologia dos objetos e a depressão precoce, ocorreram na clínica de crianças e de adolescentes até que a relação analítica, com o seu potencial criativo e terapêutico, retomasse o seu percurso. Três vinhetas clínicas, de análise de uma criança, de um adolescente e de um caso de supervisão, ilustram os constrangimentos ocorridos, nos quais tanto o paciente quanto o analista mergulharam.
Palavras chave: Ferida/contexto traumáticos; Psicopatologia pandémica; Angústias precoces; «Contracontratransferência» do supervisor; Crianças.
ABSTRACT
This article examines how the new pandemic circumstance by Covid-19 that has plagued humanity, since two thousand and twenty, constitutes a "trauma" with repercussions in the area of illusion and the analytical pair, creating a "new context" or new psychic environment, in which the relationship takes place. The loss of reliability and basic trust in the external world that had been taken for granted, as well as the change in the setting, represented by changes, either in the place where the session takes place, in the office or virtually, or in the introduction of new protection requirements against infection (wearing a mask, hygiene measures), they constituted a profound change in the condition, "a traumatic wound", creating a "new normal environment" in which the analysis is carried out. This interruption of the process as previously experienced, generated a discontinuity, which was reflected, both in the psychoanalyst and in his psychoanalytic practice, as well as in the patient as well as in the analytical process. A pandemic psychopathology based on regression to obsessive and early paranoid states could emerge as an expression of discontinuity and as a defense against the melancholic pain of loss of environment and self. The strangeness, the confusional states, the existential anxieties of annihilation, the loss of the meaning of life and identity, as well as the emergence of the pathology of objects and early depression, occurred in the clinic of children and adolescents until the analytical relationship, with its creative and therapeutic potential, resume its journey. Three clinical vignettes of analysis of a child, a teenager and a supervisory case illustrate the constraints that have occurred, in which both the patient and the analyst have plunged.Keywords: Traumatic wound/context; Pandemic psychopathology; Early anxieties; Supervisor's “counter-countertransference”; Children.
A trágica e imprevista ocorrência da pandemia por Covid-19, que assolou a humanidade em 2020, não só representou um trauma como confrontou o universo psicanalítico com a urgência do enfrentamento de circunstâncias adversas totalmente novas para a realização da psicanálise.
Referimo-nos não só à alteração do setting no que respeita à passagem da consulta presencial à virtual, mas também, e principalmente, ao contexto da angústia existencial na qual a humanidade mergulhou. Se relativamente à mudança do setting a psicanálise havia passado por experiências anteriores, mediante consultas pontuais ao telefone, e até mesmo online, já a experiência de a dupla paciente e analista estar submergida no mesmo contexto existencial constituiu uma absoluta novidade. Em nosso entender, tal contexto de catástrofe só teve equivalente na história recente da humanidade nas experiências das grandes guerras mundiais. No entanto, a circunstância atual ultrapassa a dimensão dessas experiências bélicas, uma vez que a catástrofe é vivida a nível planetário e o inimigo tem um carácter contagioso, é invisível e transversal a todas as sociedades.
É nesta nova circunstância do setting analítico e da decorrente angústia existencial na qual ambos os elementos do par analítico estão mergulhados que o psicanalista é chamado a intervir. Referimo-nos particularmente ao caso do psicanalista de crianças e de adolescentes, bem como aos aspetos que se relacionam com a prática da supervisão clínica daquele. O exercício da psicanálise neste novo contexto psicossocial terá de ter em consideração as implicações traumáticas das mudanças sofridas. São algumas destas questões que o presente artigo interroga, seguindo a observação clínica como fonte e meta para a sua reflexão.
A vida, tal como era, deixou de existir: as rotinas foram alteradas e a previsão do futuro deixou de ter consistência. Apelidamos estas circunstâncias psicossociais de «novo normal». Esta novidade existencial e a incerteza no futuro remetem-nos para um dano no plano intrassubjetivo da relação do sujeito com o mundo, o seu modo de viver a vida, bem como no plano intersubjetivo, relacional e à escala global, da perda do mundo tal como era vivido antes da pandemia.
Os objetos psíquicos que envolvem e que constituem a sustentação simbólica da humanidade, as realizações histórico-culturais que habitam esse «novo normal» quotidiano, são os primeiros a revelar a existência desse mundo perdido. Os filmes que visionamos ou os livros que lemos evocam-nos uma vida passada, perdida, pré-viral, de à-vontade e de confiança no meio ambiente. Trata-se de um mundo no qual a humanidade se reconhecia, e ninguém poderá saber se voltará a ser conquistado: sem a omnipresente angústia existencial, sem máscaras, sem o medo do contacto com o Outro ou de, tão-somente, conviver, longe de um confinamento que não é compatível com a condição humana.
A dimensão traumática comunitária da pandemia está bem patente na forma como é efetuada a comunicação social acerca da pandemia. A permanente informação brutalizadora, os números e os horrores descritos com detalhe, espelha a incredulidade (Andringa, 2020) de que o que habitualmente se percecionava como podendo acontecer aos outros povos e nações em sofrimento passou a poder acontecer à totalidade do mundo ocidental.
Esta repetição da informação do horror representa, quanto a nós, uma expressão da compulsão à repetição e está ao serviço da procura de sujeição do afeto penoso insuportável que prepara, assegura e antecede o princípio do prazer (Freud, 1920/1996). De acordo com Freud, o mecanismo da sujeição, operando sobre o processo primário, alcança a substituição da «energia livre» presente no aparelho psíquico (fonte de angústia) pela energia ligada, a energia quiescente.
No contexto analítico, esta sujeição é operada através da transformação da violência dos elementos beta informativos relacionados com a realidade ominosa, mediante a relação com um objeto alfa, alfabetizador (Bion, 1962), ou seja, o psicanalista na sessão. A experiência do inominável horror do processo primário transforma-se em processo secundário, em pensamento, de modo que enforme um crescimento psíquico. Este progresso cumpre-se no sentido de tornar tolerável a atroz realidade.
Apoiando-nos em Winnicott, apelidámos recentemente de «traumática» (Azevedo, 2020) a perda da fiabilidade e da confiança básica no mundo externo que havia sido tomado por garantido. No seguimento daquela definição, apelidámos também de «ferida traumática» a descontinuidade sofrida pelo ser sob o efeito dessa interrupção da vida-como-era-vivida.
Esta «ferida» infligida no coração do ser, ou seja, no lugar onde o potencial herdado aguarda o encontro com o meio propício que o faz tornar-se num ser, deveu-se aos choques com a nova realidade adversa (a pandemia). Esta realidade é contrária à realização das necessidades psíquicas, afetivas e sociais do ser humano, e representa um insulto à sua realização e à sua autenticidade. Ferido, o ser passa a estar, nestas circunstâncias, submetido à angústia existencial e de aniquilamento: em vez de viver a vida de um modo criativo, passa a vivê-la através da sujeição ao medo da doença e da morte (a infeção de familiares e amigos, quando não a sua perda), ao empobrecimento individual, social e mundial, bem como ao medo da relação espontânea presente nos gestos de amor e de amizade.
Este contexto traumático passou a integrar a relação analítica, pois afetou a dupla paciente e analista, os familiares e os amigos da criança, os amigos e os familiares do analista. Este novo contexto pode ser classificado, justamente, como o «novo meio normal» no qual se processa a análise. Trata-se de um meio através do qual a «área de ilusão» (Winnicott, 1958/1978) ou o espaço potencial propício à criatividade foi ferido.
É no lugar daquele objeto alfa, contentor do inominável horror, que o psicanalista de crianças se coloca: no lugar da falha onde ocorreu o rompimento do espaço criativo e potencial (Winnicott, 1958/1978), falha que fez diminuir ou eclipsar, transitória ou definitivamente, a capacidade de brincar e de pensar da criança ou, se preferirmos, a falha onde também ocorreu o dano da capacidade contentora de pensar e de sentir do analista.
Na retoma do processo analítico e da sua área lúdica e criativa, na qual a verdadeira comunicação ocorre, o par encontra quer o novo contexto ambiental resultante do trauma, quer o ser e as suas angústias, afetado que foi pela descontinuidade sofrida. A análise contacta com a melancolia representada pela perda da «vida antiga», na qual a existência se inscrevia e tinha o seu sentido próprio, bem como com as defesas erguidas contra esta. O processo analítico encontra ainda no seu percurso a perda da identidade e confronta-se também com as angústias mais primitivas.
De um ponto de vista tópico e dinâmico, houve uma regressão ao registo mais antigo sádico-anal, o da obsessão e também o da fobia. Em consequência, emergiram os medos do toque e da proximidade. A nova dinâmica psíquica instituída salda-se por um recrudescimento da severidade, da dureza e da rudeza do superego, o qual ameaça de punição terrível o ego: a infeção, sempre presente.
Freud distingue no contexto desta regressão anal dois grupos de defesas do ego (Freud, 1926/1996): um grupo menos defensivo no qual o ego produz formações reativas de piedade e de asseio, e outro mais defensivo, composto por restrições, penitências, precauções e expiações. A analogia com os tempos modernos afigura-se clara.
Os efeitos patologizantes do contexto pandémico afetam tanto a mente da criança como a do analista. Aludimos aos comportamentos que, perante a ameaça do vírus, deixaram de ter um carácter neurótico para passarem a ser os adequados às circunstâncias da luta pela sobrevivência. Referimos três aspetos: a limpeza e a desinfeção (até ao surgimento da pandemia consideradas extremas), a desconfiança para com o outro e a distância social. O par analítico foi inevitavelmente empurrado para estes aspetos de carácter regressivo através do efeito da realidade pandémica. Ocorreu aqui um paradoxo: para que a saúde pudesse ser preservada, o par foi compelido a seguir o caminho da regressão e não o da evolução psíquica, o qual constitui, por definição, o seu objetivo. A regressão foi nestas circunstâncias representada pela eleição das defesas obsessivas, bem com das paranoides, de retraimento e de isolamento social como medidas protetoras da vida até ao advento de uma vacina ou terapia eficazes.
A criança e o psicanalista seguiram esta regressão, se bem que com impactos e com responsabilidades divergentes. No essencial, embora seja ele próprio um sujeito também submetido à pandemia e à regressão que esta impôs, o psicanalista assume no processo a função analítica, observadora, contentora e madura. Por outro lado, e no que respeita à introdução no setting dos novos procedimentos que constituíram uma resposta defensiva à pandemia, a criança observa o psicanalista, questiona-o, perscruta as suas reações, aprende com o analista, a sua atitude e a consequente resposta perante as alterações do meio ambiente e do setting.
A constatação de que o analista é também um sujeito que não está incólume à lei da realidade, à pandemia ou à morte, nem sempre é oportuna para o desenvolvimento do paciente. Momentos há em que a criança e o adolescente, e até mesmo o paciente adulto, precisam de partilhar a união simbiótica, omnipotente, com o psicanalista, enquanto instrumento de reparação do self e do narcisismo falhados. A criança, à semelhança do adulto, precisa, nestes casos de reparação do self e do narcisismo, de participar da omnipotência do analista. Uma rutura precoce pode servir mais ao superego do analista do que às necessidades do paciente (Kohut, 1977).
No caso de ser rompida essa união (ou ilusão) simbiótica de valor protetor naquela fase da análise, como pôde acontecer pelo efeito das medidas protetoras que o analista teve de implementar para evitar o contágio (as já referidas defesas do ego, tais como o asseio, as restrições e as precauções), as quais revelam a sua condição mortal, é a história de um passado comum coconstruído intersubjetivamente pelo par que pode representar a ponte salvífica para a retoma do processo analítico.
Nestes contextos em que a rutura da união simbiótica da relação analítica foi vivida cedo demais, a criança ou o adolescente ficaram expostos à dor da separação precocemente vivida: emergem, nestas circunstâncias, a estranheza e a ameaça de perda de uma parte do self, precisamente aquela que representa o novo self coconstruído pela relação analítica e que constituía o resultado da união simbiótica reparadora. Tal circunstância penosa carece da rápida compreensão e intervenção analítica por parte do analista, o qual, ao interpretar a angústia de perda da identidade, contém a turbulência emocional, bem como permite a retoma do processo de modo que o trauma seja evitado. Foi o caso de uma das crianças que seguimos em análise.
O César, de sete anos, num dos primeiros dias após o confinamento, perguntou-nos: «Tens mesmo de usar a máscara? E isto — referindo-se ao gel — também?» Na sua voz, é percetível a deceção pela constatação da igualdade, no plano humano, com a sua analista, da qual recebia uma resposta diferenciada às suas questões e ansiedades. Para ele, não fazia sentido a analista precisar daqueles novos adereços. Ela estaria imune a qualquer vírus.
Para trás, haviam ficado anos de luta contra uma depressão que o afetara narcisicamente na construção da sua identidade e no seu valor sexual. César havia começado recentemente a sentir-se um igual entre os pares e a não se sentir excluído e humilhado pelos demais colegas. Em certos momentos mais difíceis do seu quotidiano, lembrava-se de nós, aspeto que representava não só uma construção bem-sucedida de um novo objeto interno reparador e protetor internalizado, como ainda a sua necessidade de comungar da omnipotência da analista que o protegia e lhe dava esperança. Porém, o seu desenvolvimento global assinalava um gradual empoderamento de competências e de capacidades que eram e se iam tornando suas.
«Também andas nisto?», perguntou de novo, ansioso e incrédulo, naquele dia do nosso reencontro.
«Pois é verdade. Também sou uma pessoa.» A analista fez um pequeno silêncio enquanto observava a atenção com que ele a ouvia e prosseguiu: «Ficaste com medo ao ver a Maria José fazer o que toda a gente faz: usar a máscara e desinfetar as mãos.»
César encolheu os ombros. Parecia óbvio. A analista acrescentou: «Tens medo de que ela se tenha tornado numa pessoa igual às outras e que por esse motivo deixe também de ser uma pessoa especial para ti.» Uma pausa serviu para aquilatar da atenção com que César a ouvia: «O teu maior receio é de que se a Maria José mudar, mude também o César, e assim se perca o que vivemos e construímos os dois: o César que se anda a sentir mais capaz, menos triste e menos medroso na vida e com os colegas.»
Enquanto falávamos, a criança perscrutava o espaço em volta, certificando-se de que tudo estava como dantes. Abria e fechava as portas do armário, reencontrando os seus objetos lúdicos. «Vês? Somos os mesmos. Tu e eu.» Pareceu serenar. Olhou para a analista, aliviado. Não o voltou a incomodar a obrigação (para ele, um verdadeiro frete) daqueles novos rituais a cumprir.
A defesa obsessiva surge ao serviço da proteção da vida mental enquanto defesa contra a desintegração psíquica mais severa, ou seja, contra a psicose. A perda do sentido e do significado da vida subjaz aos rituais de limpeza e de distanciamento sociais, os quais se podem tornar num fim em si mesmo. O ego, perante o desgaste e o fracasso devido a não conseguir resolver o problema na realidade (acabar com a pandemia) nem transformar a origem da angústia, pode partir-se, ou seja, clivar-se. É o que se constata, no plano coletivo, na emergência de «teorias da conspiração» pseudoexplicativas da pandemia.
De facto, a continuação da imersão numa vivência pandémica, sem horizonte de esperança de melhoria significativa, desgastou o ego, forçando-o, perante estas circunstâncias extremas, à regressão mais severa. Referimos a regressão ao registo esquizo-paranoide, outrora vivenciado nos primeiros tempos de vida como defesa primária contra o instinto de morte (Klein, 1946/1985).
Está em causa a elaboração do luto de um modo de vida anterior recentemente perdido. As vias para lidar com este sofrimento imposto ao ego, desde a mais regredida, a melancólica, à mais evoluída, a obsessiva, abrem-se, a partir dos trabalhos de Abraham (1921/1953), como caminhos possíveis. Trata-se, por um lado, da via narcísica de incorporação oral, na qual o ego incorpora o objeto perdido e se torna indistinto dele mediante o processo de identificação de registo oral-canibal; e, por outro lado, da via obsessiva de registo sádico-anal, mediante a qual se efetiva a expulsão do objeto em fezes. Incluímos neste registo a observação do comportamento de certos adolescentes que manifestam desprezo, negação e displicência para com a sua proteção, bem como para com a dos outros.
Melanie Klein (1940/1996) acrescentou um outro aspeto que consideramos fundamental para a compreensão e para a evolução do processo do luto: referimo-nos à possibilidade da elaboração não patológica do luto mediante a reinstalação dos bons objetos internos, os quais foram perdidos transitoriamente pelo efeito da perda. O trabalho de luto evoluirá favoravelmente, nestes casos em análise, ao encontro da reelaboração das experiências dolorosas precoces, nomeadamente as referentes à posição depressiva inicial com os seus conflitos e as suas angústias correlatas.
O acesso a esta posição, a sua revivificação e reelaboração, torna-se possível apenas pela ação da relação com o bom seio externo, o qual, na psicanálise, é representado pela relação com o bom objeto analítico. Este estabelece a relação segura que permite ao paciente o decréscimo das ansiedades persecutórias e a consequente reintrojeção benigna.
Na clínica de crianças e de adolescentes, verificámos, a este propósito, nos casos mais graves de psicose infantil, principalmente naqueles que foram atingidos pela pandemia já num claro movimento de recuperação marcado pela elaboração e pela separação do passado psicopatológico, a emergência da psicopatologia dos objetos outrora introjetada no self.
A análise do objeto incorporado no self, sustentada e desenvolvida nas condições terapêuticas pelo bom objeto analítico, permitiu a separação daquele, bem como a redefinição da identidade e, ainda, a transformação das angústias paranoides em depressivas. Apresenta-se seguidamente um caso ilustrativo deste processo.
Raquel, de 14 anos, estava em análise havia quatro anos, a três sessões semanais, devido a um quadro de sintomatologia psicótica simbiótica grave. Iniciara, havia cerca de um ano, um árduo processo de autonomização relativamente a uma dependência extrema dos pais. Raquel dormira na cama dos pais até aos 13 anos, não suportava estar sozinha, nem durante alguns segundos, numa qualquer divisão da casa. Não poderemos neste breve resumo descrever o grau de horror que uma ligeira separação havia, desde sempre, induzido nesta criança.
Recentemente, Raquel começara a dormir e a estudar sozinha, progressos que se percebia terem sido conquistados aos territórios, outrora fusionados, do ego e dos seus objetos internos. O ego analítico, aliado ao analista, conquistava novas condições para se desenvolver, restaurar o seu narcisismo e relacionar-se.
Com os objetos externos — os pais —, começara a enfrentar oposição a esta separação e desenvolvimento. Estes não só eram ambivalentes quanto ao processo terapêutico que apelidavam pejorativamente de «bengala», como não pareciam reconhecer, nem lhes interessar, o fim da simbiose com a criança. Dois claros exemplos dessa negação eram o facto de a filha, não obstante se sentir com mais competência e autoestima para estudar sozinha, continuar a ser conduzida, à força, às explicações por parte de um familiar; e de, não obstante ser capaz de dormir sozinha, o pai e a mãe, alternadamente, não abandonarem o seu quarto à noite.
Só a persistência do trabalho analítico houvera, havia meses, tornado inequívoca a capacidade da paciente para estudar e dormir sozinha. Raquel havia não só passado a tolerar estar consigo própria, como também alcançara avaliações superiores nas disciplinas em que o fazia.
Na retoma das consultas presenciais, Raquel contou-nos um pesadelo que a havia angustiado durante o confinamento, o qual não nos tinha ainda relatado, «pois havia sempre outras coisas mais importantes para falar». Tinha havido uma guerra: Raquel lembrava-se da Segunda Guerra Mundial e das perseguições nazis. Acordava aflita. Nas horas subsequentes ao pesadelo, não conseguia adormecer. «E se aquilo acontecesse de novo na história da humanidade? Se ela perdesse a família e fosse parar a um campo de concentração?»
O ambiente cinzento do pesadelo conduziu-a à partilha de um facto que a tinha perturbado durante o tempo de confinamento e que ainda não relatara. A mãe estava convencida de que o vírus havia sido fabricado pelos chineses para dominarem e destruírem a humanidade. A mãe falava de camiões-contentores cheios de chineses que vinham a caminho da Europa para que esta fosse dominada. Havia convencido a família a não frequentar mais as populares lojas chinesas do seu bairro e a duvidar das roupas e demais artigos ali vendidos, pois poderiam conter o vírus.
A descrição das preocupações maternas prosseguia enquanto, na nossa mente, surgia a imagem daquela mulher, de olhar esquivo e com um vinco de preocupação constante na testa. Na nossa mente, perpassavam as memórias das angústias persecutórias da paciente, muito fortes no início do processo, as quais ganhavam novo relevo: o pesadelo da filha representava a loucura introjetada da mãe.
Raquel olhava-nos, com ansiedade, esperando uma resposta que intuía: «A mãe estava maluca, não estava?»
Sem dúvida; mas mais importante do que apelidar a mãe de «maluca» seria reconhecer a sua identificação com esta parte interna. Surge aqui a analogia entre Raquel e a mãe, que a havia conduzido a um terror extremo pelo mundo externo, cimentando as bases de uma insegurança básica e de uma dependência simbiótica. A possibilidade de reconhecer a loucura da mãe dentro de si própria constituía um passo definitivo no processo de cura desta pré-adolescente. O pesadelo fora, durante o confinamento, não só perder a nova relação introjetada com a analista como também voltar atrás, regredir àquele «claustro», no dizer de Meltzer (2015), o qual representava a fusão entre as suas angústias paranoides destrutivas e as do objeto. Assim, o terror do campo de concentração não se colocava no lugar do futuro, do que poderia vir a acontecer, mas, sim, no lugar do passado, o horror que já tinha ocorrido, mais atrás, na sua vida.
Outra das circunstâncias agravantes do que apelidamos de patologia psíquica pandémica é a que decorre da ocultação do rosto. O seu efeito sobre a psique é insidioso e malevolente, facto que nos impele ao questionamento de quais serão as consequências desta prática na geração que vivenciou a pandemia numa idade precoce, sujeita que foi à interação com os outros, jovens e demais adultos, de rosto ocultado.
Sabemos que o sorriso foi identificado por Spitz (1965/1968) como o primeiro organizador da mente. O sorriso estabelece-se pelo terceiro mês, relativamente à mãe, ou à cuidadora, que lhe providencia os alimentos, o físico e o psíquico, os quais são, nesta fase da vida, indiferenciados. Estes cuidados incluem não só a alimentação, os cuidados com a temperatura, a proteção e a higiene, como também o afeto com que são prodigalizados pelos cuidadores, representando o que Winnicott definiu como o holding e o handling (1954/1978).
O sorriso constitui-se ainda num precursor do objeto, representando um marco fundamental no reconhecimento daquele e da sua intencionalidade interativa. É esta interação intencional, a qual se estabelecerá numa progressiva complexificação, que precocemente permitirá o estabelecimento da sintonia afetiva entre a mãe e o bebé.
Stern (1992) irá, justamente, aprofundar o papel do contacto visual, a troca dos olhares, a mímica da boca, na aquisição de um sentido emergente do self e da possibilidade de comunicação intersubjetiva primária. Esta comunicação precoce será a percursora da sintonia afetiva. O diálogo intersubjetivo precoce irá permitir no futuro a partilha intersubjetiva: efetuar a leitura das intenções do outro; agir em sincronia; aceder ao universo complexo da partilha, de histórias e de afetos, a qual nos permite viver num mundo pleno, o das relações humanas, e não na solidão cósmica, como é o caso do universo autista; permite-nos ainda orientarmo-nos intersubjetivamente, ou seja, saber, por exemplo, em cada momento o lugar que ocupamos nos grupos — familiar ou social.
Alicerçados na clínica, observamos que o rosto escondido atrás da máscara pode adquirir uma tonalidade persecutória intensa, paranoide, acaso as projeções inconscientes ativas sejam referentes à voracidade oral primária e às fantasias inconscientes relacionadas com os ataques primitivos orais. Desta dinâmica, resulta a clivagem e a projeção do objeto frustrante, o objeto persecutório parcial, com as representações a ele associadas: o seio devorador e a «mãe-má» são as mais comuns. A ocultação da boca pode favorecer ainda a fantasia precoce destrutiva, associada à culpabilidade oral de devoração do objeto, representando a máscara para a criança, neste caso a imagem da defesa anorética contra a incorporação oral, a deglutição do objeto.
Defendemos ainda neste artigo que a ocultação do rosto do Outro remete o paciente ao encontro da falha de sintonia precocemente vivida com o objeto e à consequente desorientação psíquica emergente. Esta ocultação pode ter ainda, no caso das crianças, uma repercussão inconsciente ligada à experiência precoce maligna do encontro com o rosto do objeto inexpressivo, o rosto do horror da depressão do objeto, o qual, no quadro da depressão mais aguda, adquire um valor de objeto morto. Este objeto introjetado nuclearmente ao ego constituirá uma poderosa patologia narcísica e depressiva, que foi bem ilustrada por Green (1988) através da síndroma da «mãe-morta».
É um caso ilustrativo destas sequelas o de César, que seguidamente continuamos a expor.
No caso de César — com a sua dúvida de se era mesmo a psicanalista a que «andava naquilo» dos cuidados de higiene —, a ocultação da boca da analista estava na origem do estado confusional do paciente no presente, aquando da retoma das sessões presenciais.
A criança corria pelo espaço, abria a caixa lúdica e retirava os brinquedos, não conseguindo brincar ou fazer uma sequência associativa. Tantos rituais novos, encaixados à força, tal como o uso da máscara, haviam precipitado a ameaça da perda maior: a perda de si próprio em construção e da analista, no seu interior. As sessões eram angustiantes. A transferência penosa e o seu correlato enactment haviam tomado o lugar dos primeiros longos momentos das sessões para, progressivamente, ir cedendo, mais perto do final da hora da sessão. Reencontrava-se, nesses derradeiros instantes, a si e à analista, bem como à nova relação (Matos, 2017) intersubjetiva e não saturada pela transferência.
Dois anos de relação haviam-lhe permitido encontrar na analista uma companheira e uma testemunha fiável. A utilização da máscara havia ameaçado a perda da analista, bem como a perda de si próprio aquando da retoma das sessões presenciais. A história da relação analítica já edificada ia-o sustendo conquanto tivesse de mergulhar na angústia da repetição durante os primeiros momentos das sessões.
Progressivamente, retomava o seu desenvolvimento, distinguindo-se da relação projetiva e transferencial que o havia colocado, através da compulsão à repetição, perante a mãe abandonante e indisponível do passado, devido ao conflito constante mantido com o seu progenitor. Tal transformação ou melhoria refletia-se no quotidiano em relações menos saturadas pela transferência patológica.
Recordamos, a este propósito, o trabalho pioneiro de Melanie Klein. Logo no início da sua obra, esta autora descobriu não só a existência da transferência infantil na consulta como sendo a principal resistência ao trabalho analítico, o que lhe valeu a incompatibilidade com a sua coeva Anna Freud e com a escola vienense, como também reconheceu que esta transferência ocorre nas circunstâncias do quotidiano da criança, perturbando-a, como sucede frequentemente no meio escolar, prejudicando a aprendizagem.
No caso de César, podemos afirmar que, perante a ocultação do rosto da analista, a criança era compelida ao contacto com aquela porção maligna do objeto do passado, reencenando na relação atual a angústia experimentada de quase aniquilamento do self. A agitação parecia ainda significar a procura de si próprio, da parte boa do objeto, bem como da analista, nova companheira. Nós dizíamos-lhe: «Já foi muito mau teres tido a mãe triste e preocupada quando eras pequenino; isso fazia-te sentir perdido. Agora, ao veres a Maria José, aqui, diferente, sem lhe veres a boca e o sorriso, lembras-te da mãe triste e zangada do teu passado... E outra coisa, tens medo de que eu me transforme numa pessoa parecida com a tua mãe. Isso é que é o pior!»
César tapava a boca com toda a força. A analista ia-lhe interpretando: «Pensavas que tinhas estragado tudo, a mãe, a Maria José. Não querias meter mais nada dentro de ti.»
César ia parando a correria, destapava a boca e olhava-nos. «Vês?», dizíamos-lhe, «sou a mesma». E acrescentávamos: «E tu também. Pensaste que te tinhas perdido e a mim também!»
As comissuras dos seus olhos franziram-se no que percebemos ser um sorriso. Ouvimo-lo dizer: «Trouxeste as minhas cartas?», olhando-nos pela primeira vez nos olhos. Referia-se a umas cartas que havíamos desenhado por videoconferência nas semanas iniciais da pandemia.
«Claro!» O tom da voz da analista era alegre, celebrando a reintegração psíquica nascente, a qual permitia a memória e o reencontro com o seu self e com o passado coconstruído. «E o mais importante que eu trouxe foste sempre tu, dentro de mim.»
César, concentrado na tarefa de brincar, já não olhava a analista. Reencontrou-a e reencontrou-se, apoiado pela segurança que a relação lhe dava. Retomámos, assim, as sessões no lugar psíquico onde haviam ficado, imediatamente antes de ter ocorrido a perda da identidade.
O analista e a criança estão submersos nas mesmas circunstâncias ambientais e sujeitos às mesmas experiências humanas, embora o primeiro tenha uma função alfa, de contenção e de maturidade mais desenvolvida do que o segundo. No entanto, uma uniformização doentia foi introduzida à força na relação analítica: não é só a criança, o paciente, quem pode temer o analista por efeito da transferência ou da projeção; é também o analista quem teme o contacto com o paciente enquanto potencial transmissor do vírus.
Esse facto tornou o analista real aos olhos da criança. Esta atribuía-lhe uma aura oriunda da sua omnipotência e do seu pensamento mágico infantil: «Tens mesmo de usar isso?», dizia César, querendo a sua interrogação ainda significar o espanto por a sua analista ser «também» daquele género mortal, sujeito às contingências da vida.
De facto, podemos considerar que foram duas as consequências para o paciente no plano da perceção do analista: a primeira consiste na perda da omnipotência atribuída ao analista, circunstância que faz emergir a perceção realista daquele. Acentuamos o facto de que esta perceção pode representar um dano, ou um trauma, se ocorrer cedo demais, tal como acontece nas estruturas mais regredidas da personalidade, sejam elas autísticas ou simbióticas (Tustin, 1972). Mesmo nos casos neuróticos, com enclaves autistas, cujo núcleo mais pregresso de sofrimento foi ativado pela descontinuidade catastrófica do setting das sessões, assistimos a um recrudescimento das ansiedades, nomeadamente as de separação.
A segunda consequência diz respeito à perda de uma parte da função de holding do analista, que é representada, nos estados de imersão total e ainda de relativa dependência (Winnicott, 1960/1983), pela privação dos cuidados providenciados pelo analista no seu duplo papel de mãe-meio-ambiente e de mãe suficientemente boa.
Parte dessa omnipotência e de função de holding foi danificada no momento em que a sessão passou a ser virtual. A distância serviu para proteger o paciente e também o analista. O consultório e o seu interior, que representam para o inconsciente do paciente o interior do corpo materno (Winnicott, 1954/1978), deixaram de estar a cargo do analista. Quer no caso da criança, quer no do adolescente, o lugar e as circunstâncias, sejam a luz, a temperatura, o isolamento, o silêncio em que se realizam as sessões, deixaram de estar sob o controle do analista. Na clínica infantil, alguma aliança extra teve de ser encontrada com os pais das crianças, no sentido de um deles estar disponível para colaborar na manutenção do setting virtual, não permitindo a interrupção da sessão e ajudando a criança pequena a ir à casa de banho ou a retomar a ligação da Internet quando perdida.
Já no caso dos adolescentes, a sessão virtual teve, na maioria das circunstâncias, de ser efetuada fora de casa, pois esta não oferecia ao jovem a intimidade protetora do consultório do analista. Tal facto constituiu uma perda importante para a parte infantil do adolescente ou do jovem adulto, que precisava ainda de elaborar aspetos precoces da sua identidade e proceder à sua integração para atingir uma identidade adulta. Nestas circunstâncias, observámos, por exemplo, a suspensão do «conflito de ambitendência» (Haynal, 1981) e a regressão a uma fase anterior de dependência.
Recordamos, a este propósito, a descoberta inicial de Melanie Klein (1932/1997) com a menina de dois anos e nove meses, a Rita, que fez perceber a Klein que a análise não poderia ser realizada na casa da paciente. Teria de decorrer num outro espaço que não o do quotidiano da criança, de modo que a transferência fosse livremente expressa com a sua carga perturbadora agressiva, destrutiva, de oposição, de ressentimento e de culpa, sem que interviessem as repressões educativas incompatíveis com a livre expressão.
Nas circunstâncias da pandemia, o analista não está nem se sente seguro no seu consultório. Condicionantes situacionais e pessoais podem pesar na sua decisão de trabalhar no registo virtual, as quais não possuem qualquer relação com as exigências da profissão que escolheu abraçar. Referimos, de entre as condicionantes situacionais, a constatação de que o consultório se tornou inadequado perante as exigências de uma situação pandémica, e a decorrente contenção do contágio — seja porque não possui duas entradas distintas, uma para entrar, outra para sair, de modo que os pacientes não se cruzem; seja porque é pouco espaçoso, não permitindo uma circulação folgada entre o paciente e o analista nem a manutenção dos dois metros de distância de segurança; seja porque o intervalo entre as sessões é curto ou não existe, facto que prejudica o arejamento recomendado do habitáculo; seja porque, somada a todas estas restrições, o analista é um analista de crianças e, em boa consciência, deverá dispor de tempo para desinfetar, não só os objetos e espaços, poltronas, WC, maçanetas, etc., nos quais a criança ou o adolescente tocaram, como ainda os brinquedos utilizados na sessão.
Como condicionantes pessoais adversas à continuação das sessões presenciais, referimos, de entre outras, a idade do analista, bem como a sua condição física e clínica particular, a qual poderá tornar-se, frente à pandemia, um obstáculo. As doenças crónicas, assim como a idade avançada, são fatores que, até então, não representando um obstáculo ao exercício da prática clínica, se tornaram, nas circunstâncias pandémicas, numa barreira à psicanálise presencial. Trata-se de uma situação que se afigura injusta, dada a longa formação do analista, que o remete para uma tardia maturidade profissional.
Algumas circunstâncias conduzem o analista não só ao evitamento das sessões presenciais como também ao cansaço extremo no final do dia. A angústia existencial, a culpabilidade, a defesa maníaca, bem como a dor depressiva do analista, passaram a figurar no cenário intrapsíquico e, portanto, analítico. A resposta a algumas destas questões constitui uma aproximação a esta temática: como poderá o analista trabalhar presencialmente se sentir a sua vida em risco ou se estiver dominado por uma forte angústia existencial? E se colocar a vida dos seus pacientes em risco ao menosprezar, mediante uma defesa maníaca, as limitações do seu consultório, o qual fora até então adequado, mas agora se tornou obsoleto? E se a defesa pela negação for de tal modo premente que o conduz a desprezar a virulência do risco de contágio, retirando a máscara nas sessões? E se o psicanalista exercer a clínica contrariado pelo facto de não encontrar no momento presente, ou num futuro próximo, as condições ideais do passado? Como será a sua contratransferência?
O novo contexto pandémico, que não acabou com o confinamento, obriga o analista a uma maior exigência de análise e, sobretudo, de autoanálise. O caso que seguidamente relatamos ilustra como compete ao elemento mais alfabetizado da dupla analítica a desintoxicação e a compreensão das interinfluências inconscientes transferenciais e contratransferenciais, nomeadamente no caso da supervisão clínica.
A Dra. D. tinha começado, havia alguns anos, uma supervisão semanal connosco em psicoterapia psicanalítica de crianças e adolescentes. Durante esse período de colaboração, havia desenvolvido uma capacidade de observação, de insight e de à-vontade na apresentação e na reflexão dos seus casos, de tal modo que se expandira na relação com os seus pacientes. No entanto, e durante os últimos meses, vinha trazendo à supervisão o caso de uma jovem adolescente dependente da mãe e que queria desistir da escola desde o início do processo, ideia com a qual a Dra. D. vinha concordando, como solução de reduto final para a separação da paciente das garras da mãe dominadora. O pai da paciente era uma figura sombria, concordante com a mulher, não oferecendo à paciente uma alternativa identificatória no processo de desenvolvimento. A paciente queixava-se de ter sempre vivido de acordo com os projetos maternos: estudar porque a mãe o exigia, fazer exercício físico porque a mãe o recomendava, nunca tendo tido oportunidade de expressar o seu querer. O relato das sessões da Dra. D. resultavam para nós numa sensação algo enfadonha, dando-nos a impressão da existência de alguma falha ou de um registo pouco autêntico. A paciente referia ultimamente os progressos tidos com a psicoterapia, o sentimento de estar mais autónoma, e era-lhe fácil apontar as causas do seu fracasso à mãe superprotetora.
Se uma leitura superficial poderia apontar para ser esse um movimento transferencial, tal interpretação não encontrava sintonia com a nossa «contracontratransferência», designação com que pretendemos significar a resposta inconsciente do supervisor à contratransferência da dupla paciente-psicoterapeuta apresentada em supervisão.
Um dia, estando nós nesse estado de espírito algo embotado, decidimo-nos por escutar o relato do caso como se de um sonho se tratasse. Ouvimos, então, algo novo que pôs fim ao nosso estado de espírito e que recuperou a nossa vivacidade. A Dra. D. repetia as jactâncias da paciente, os seus elogios, apontando melhorias, que existiam, sem dúvida. Porém, na nossa opinião, o núcleo da estrutura da personalidade da paciente permanecia igual. A Dra. D. aguardava de nós aquela confirmação da melhoria do quadro que não lhe podíamos ofertar.
Havíamos começado a deixar ressoar o relato de outro aspeto da paciente em nós: um aspeto exigente, regressivo e depressivo. A paciente, não acreditando em si própria, sentindo-se inferiorizada pela proteção materna e incapacitada ainda para uma verdadeira separação, exigia da mãe a assistência e a dependência que uma pequena criança não teria capacidade nem assertividade para o fazer. Este quadro exigente repetia-se na transferência e era contra-atuado num certo desinvestimento inconsciente da psicoterapeuta, patente, quanto a nós, na concordância com o abandono da vida escolar da paciente.
A inibição e o medo de viver da paciente emergiram na nossa escuta quando, no relato da Dra. D., a ouvimos confessar algo semelhante a isto: «cá estamos nós a entreter os pacientes», referindo-se às sessões on-line que insistia em prosseguir, não obstante o confinamento ter terminado havia meses.
Pudemos então trabalhar, primeiro introspetivamente, a nossa empatia com a Dra. D.: esta sentir-se-ia, decerto, profundamente desesperada com o caso, pretendendo dá-lo por concluído, o que consistiria numa atuação da sua contratransferência correspondente à parte objetal da paciente, que nunca havia investido narcisicamente o self da paciente. Por outro lado, a Dra. D. parecia estar numa encruzilhada da sua vida, na qual parecia sentir-se sem forças e sem capacidades para retomar a clínica presencial, mantendo o trabalho virtual como um compasso de espera. Assim, o aspeto falso que vínhamos sentindo nas sessões dizia respeito à conceção que a Dra. D. fazia do seu trabalho naquele momento, e, consequentemente, do nosso também, dada a sua exigência em ter supervisões virtuais. À medida que prosseguíamos a nossa autoanálise, íamos percebendo um profundo pesar relativo ao caso.
Encontrámos, enfim, uma maneira de interpelar cautelosamente a Dra. D., sem ferir as suas suscetibilidades, acerca da razão pela qual não retomava as sessões presenciais. Pela sua resposta, percebemos que o seu pai, idoso e doente, vivia consigo. A ameaça de ser contagiada pelos pacientes-crianças, de transmitir a doença e, quiçá, da morte do familiar amado era grande. Este facto psíquico pôde, assim, ser olhado num novo contexto e colocado numa perspetiva que já não obscurecia o caso. Um trabalho de retoma dos aspetos exigentes e regressivos da paciente pôde então ser iniciado.
A clínica de crianças e de adolescentes tem refletido a emergência de uma tendência regressiva desencadeada pelo trauma representado pela pandemia por Covid-19, a qual impôs à humanidade um estado psíquico de luto pela perda da vida tal como ela havia sido. Tal circunstância representou uma ferida na área transicional da experiência humana e expôs o ser à elaboração de um luto forçado, afetando o par analítico capturado num novo contexto psicoafetivo e social. O analista, tal como a criança e o adolescente, está, nestas novas circunstâncias do trauma coletivo, também em sofrimento. As mudanças de setting a que foi obrigado o par analítico causaram novas dificuldades na psicopatologia já existente no paciente. Só a capacidade analítica, contentora, transformadora, e a capacidade de se manter ligado ao mundo e à sua autoanálise poderão vir em auxílio do analista de crianças e de adolescentes, bem como do seu supervisor, proporcionando as condições para prosseguir a clínica nestas circunstâncias tão adversas.
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[1] Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta, Psicanalista e escritora. Formadora na Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Titular, formadora e supervisora na SPPC, colaboradora também na Formação na SEPEA (Société Européenne pour la Psychanalyse de l’Enfant et de l’Adolescent), membro da IPA (International Psychoanalytical Association) e FEP (Fédération Européenne de Psychanalyse). E-mail: mjmazevedo@hotmail.com